quinta-feira, 6 de maio de 2010

A origem da Filosofia

A origem da Filosofia

A palavra filosofia

A palavra

filosofia
é grega. É composta por duas outras: philo e sophia.

Philo

deriva-se de

philia

, que significa amizade, amor fraterno, respeito entre os iguais.

Sophia

quer dizer sabedoria e dela vem a palavra sophos

, sábio.

Filosofia

significa, portanto, amizade pela sabedoria, amor e respeito pelo saber.

Filósofo

: o que ama a sabedoria, tem amizade pelo saber, deseja saber.

Assim, filosofia indica um estado de espírito, o da pessoa que ama, isto é, deseja

o conhecimento, o estima, o procura e o respeita.

Atribui-se ao filósofo grego Pitágoras de Samos (que viveu no século V antes de

Cristo) a invenção da palavra

filosofia

. Pitágoras teria afirmado que a sabedoria

plena e completa pertence aos deuses, mas que os homens podem desejá-la ou

amá-la, tornando-se filósofos.

Dizia Pitágoras que três tipos de pessoas compareciam aos jogos olímpicos (a

festa mais importante da Grécia): as que iam para comerciar durante os jogos, ali

estando apenas para servir aos seus próprios interesses e sem preocupação com as

disputas e os torneios; as que iam para competir, isto é, os atletas e artistas (pois,

durante os jogos também havia competições artísticas: dança, poesia, música,

teatro); e as que iam para contemplar os jogos e torneios, para avaliar o

desempenho e julgar o valor dos que ali se apresentavam. Esse terceiro tipo de

pessoa, dizia Pitágoras, é como o filósofo.

Com isso, Pitágoras queria dizer que o filósofo não é movido por interesses

comerciais - não coloca o saber como propriedade sua, como uma coisa para ser

comprada e vendida no mercado; também não é movido pelo desejo de competir

- não faz das idéias e dos conhecimentos uma habilidade para vencer

competidores ou “atletas intelectuais”; mas é movido pelo desejo de observar,

contemplar, julgar e avaliar as coisas, as ações, a vida: em resumo, pelo desejo de

Convite à Filosofia

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saber. A verdade não pertence a ninguém, ela é o que buscamos e que está diante

de nós para ser contemplada e vista, se tivermos olhos (do espírito) para vê -la.

A Filosofia é grega

A Filosofia, entendida como aspiração ao conhecimento racional, lógico e

sistemático da realidade natural e humana, da origem e causas do mundo e de

suas transformações, da origem e causas das ações humanas e do próprio

pensamento, é um fato tipicamente grego.

Evidentemente, isso não quer dizer, de modo algum, que outros povos, tão

antigos quanto os gregos, como os chineses, os hindus, os japoneses, os árabes,

os persas, os hebreus, os africanos ou os índios da América não possuam

sabedoria, pois possuíam e possuem. Também não quer dizer que todos esses

povos não tivessem desenvolvido o pensamento e formas de conhecimento da

Natureza e dos seres humanos, pois desenvolveram e desenvolvem.

Quando se diz que a Filosofia é um fato grego, o que se quer dizer é que ela

possui certas características, apresenta certas formas de pensar e de exprimir os

pensamentos, estabelece certas concepções sobre o que sejam a realidade, o

pensamento, a ação, as técnicas, que são completamente diferentes das

características desenvolvidas por outros povos e outras culturas.

Vejamos um exemplo. Os chineses desenvolveram um pensamento muito

profundo sobre a existência de coisas, seres e ações contrários ou opostos, que

formam a realidade. Deram às oposições o nome de dois princípios: Yin e Yang.

Yin é o princípio feminino passivo na Natureza, representado pela escuridão, o

frio e a umidade; Yang é o princípio masculino ativo na Natureza, representado

pela luz, o calor e o seco. Os dois princípios se combinam e formam todas as

coisas, que, por isso, são feitas de contrários ou de oposições. O mundo, portanto,

é feito da atividade masculina e da passividade feminina.

Tomemos agora um filósofo grego, por exemplo, o próprio Pitágoras. Que diz

ele? Que a Natureza é feita de um sistema de relações ou de proporções

matemáticas produzidas a partir da unidade (o número 1 e o ponto), da oposição

entre os números pares e ímpares, e da combinação entre as superfícies e os

volumes (as figuras geométricas), de tal modo que essas proporções e

combinações aparecem para nossos órgãos dos sentidos sob a forma de

qualidades contrárias: quente-frio, seco-úmido, áspero-liso, claro-escuro, grandepequeno,

doce-amargo, duro-mole, etc. Para Pitágoras, o pensamento alcança a

realidade em sua estrutura matemática, enquanto nossos sentidos ou nossa

percepção alcançam o modo como a estrutura matemática da Natureza aparece

para nós, isto é, sob a forma de qualidades opostas.

Qual a diferença entre o pensamento chinês e o do filósofo grego?

O pensamento chinês toma duas características (masculino e feminino) existentes

em alguns seres (os animais e os humanos) e considera que o Universo inteiro é

Marilena Chauí

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feito da oposição entre qualidades atribuídas a dois sexos diferentes, de sorte que

o mundo é organizado pelo princípio da sexualidade animal ou humana.

O pensamento de Pitágoras apanha a Natureza numa generalidade muito mais

ampla do que a sexualidade própria a alguns seres da Natureza, e faz distinção

entre as qualidades sensoriais que nos aparecem e a estrutura invisível da

Natureza, que, para ele, é de tipo matemático e alcançada apenas pelo intelecto,

ou inteligência.

São diferenças desse tipo, além de muitas outras, que nos levam a dizer que

existe uma sabedoria chinesa, uma sabedoria hindu, uma sabedoria dos índios,

mas não há filosofia chinesa, filosofia hindu ou filosofia indígena.

Em outras palavras, Filosofia é um modo de pensar e exprimir os pensamentos

que surgiu especificamente com os gregos e que, por razões históricas e políticas,

tornou-se, depois, o modo de pensar e de se exprimir predominante da chamada

cultura européia ocidental da qual, em decorrência da colonização portuguesa do

Brasil, nós também participamos.

Através da Filosofia, os gregos instituíram para o Ocidente europeu as bases e os

princípios fundamentais do que chamamos razão, racionalidade, ciência, ética,

política, técnica, arte.

Aliás, basta observarmos que palavras como lógica, técnica, ética, política,

monarquia, anarquia, democracia, física, diálogo, biologia, cronologia, gênese,

genealogia, cirurgia, ortopedia, pedagogia, farmácia, entre muitas outras, são

palavras gregas, para percebermos a influência decisiva e predominante da

Filosofia grega sobre a formação do pensamento e das instituições das sociedades

européias ocidentais.

É por isso que, em decorrência do predomínio da economia capitalista criada

pelo Ocidente e que impõe um certo tipo de desenvolvimento das ciências e das

técnicas, falamos, por exemplo, em “ocidentalização dos chineses”,

“ocidentalização dos árabes”, etc. Com isso queremos significar que modos de

pensar e de agir, criados no Ocidente pela Filosofia grega, foram incorporados

até mesmo por culturas e sociedades muito diferentes daquela onde nasceu a

Filosofia.

É pelo mesmo motivo que falamos em “orientalismos” e “orientalistas” para

indicar pessoas que buscam no budismo, no confucionismo, no Yin e no Yang,

nos mantras, nas pirâmides, nas auras, nas pedras e cristais maneiras de pensar e

de explicar a realidade, a Natureza, a vida e as ações humanas que não são

próprias ou específicas do Ocidente, isto é, são diferentes do padrão de

pensamento e de explicação que foram criados pelos gregos a partir do século

VII antes de Cristo, época em que nasce a Filosofia.

Convite à Filosofia

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O legado da Filosofia grega para o Ocidente europeu

Por causa da colonização européia das Américas, nós também fazemos parte -

ainda que de modo inferiorizado e colonizado - do Ocidente europeu e assim

também somos herdeiros do legado que a Filosofia grega deixou para o

pensamento ocidental europeu.

Desse legado, podemos destacar como principais contribuições as seguintes:

? A idéia de que a Natureza opera obedecendo a leis e princípios necessários e

universais, isto é, os mesmos em toda a parte e em todos os tempos. Assim, por

exemplo, graças aos gregos, no século XVII da nossa era, o filósofo inglês Isaac

Newton estabeleceu a lei da gravitação universal de todos os corpos da Natureza.

A lei da gravitação afirma que todo corpo, quando sofre a ação de um outro,

produz uma reação igual e contrária, que pode ser calculada usando como

elementos do cálculo a massa do corpo afetado, a velocidade e o tempo com que

a ação e a reação se deram.

Essa lei é

necessária

, isto é, nenhum corpo do Universo escapa dela e pode

funcionar de outra maneira que não desta; e esta lei é

universal

, isto é, válida

para todos os corpos em todos os tempos e lugares.

Um outro exemplo: as leis geométricas do triângulo ou do círculo, conforme

demonstraram os filósofos gregos, são universais e necessárias, isto é, seja em

Tóquio em 1993, em Copenhague em 1970, em Lisboa em 1810, em São Paulo

em 1792, em Moçambique em 1661, ou em Nova York em 1975, as leis do

triângulo ou do círculo são necessariamente as mesmas.

? A idéia de que as leis necessárias e universais da Natureza podem ser

plenamente conhecidas pelo nosso pensamento, isto é, não são conhecimentos

misteriosos e secretos, que precisariam ser revelados por divindades, mas são

conhecimentos que o pensamento humano, por sua própria força e capacidade,

pode alcançar.

? A idéia de que nosso pensamento também opera obedecendo a leis, regras e

normas universais e necessárias, segundo as quais podemos distinguir o

verdadeiro do falso. Em outras palavras, a idéia de que o nosso pensamento é

lógico ou segue leis lógicas de funcionamento.

Nosso pensamento diferencia uma afirmação de uma negação porque, na

afirmação, atribuímos alguma coisa a outra coisa (quando afirmamos que

“Sócrates é um ser humano ”, atribuímos humanidade a Sócrates) e, na negação,

retiramos alguma coisa de outra (quando dizemos “este caderno não é verde”,

estamos retirando do caderno a cor verde).

Nosso pensamento distingue quando uma afirmação é verdadeira ou falsa. Se

alguém apresentar o seguinte raciocínio: “Todos os homens são mortais. Sócrates

é homem. Logo, Sócrates é mortal ”, diremos que a afirmação “Sócrates é mortal”

Marilena Chauí

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é verdadeira, porque foi concluída de outras afirmações que já sabemos serem

verdadeiras.

? A idéia de que as práticas humanas, isto é, a aç ão moral, a política, as técnicas

e as artes dependem da vontade livre, da deliberação e da discussão, da nossa

escolha passional (ou emocional) ou racional, de nossas preferências, segundo

certos valores e padrões, que foram estabelecidos pelos próprios seres humanos e

não por imposições misteriosas e incompreensíveis, que lhes teriam sido feitas

por forças secretas, invisíveis, sejam elas divinas ou naturais, e impossíveis de

serem conhecidas.

? A idéia de que os acontecimentos naturais e humanos são necessários, porque

obedecem a leis naturais ou da natureza humana, mas também podem ser

contingentes ou acidentais, quando dependem das escolhas e deliberações dos

homens, em condições determinadas.

Dessa forma, uma pedra cai porque seu peso, por uma lei natural, exige que ela

caia natural e necessariamente; um ser humano anda porque as leis anatômicas e

fisiológicas que regem o seu corpo fazem com que ele tenha os meios necessários

para a locomoção.

No entanto, se uma pedra, ao cair, atingir a cabeça de um passante, esse

acontecimento é contingente ou acidental. Por quê? Porque, se o passante não

estivesse andando por ali naquela hora, a pedra não o atingiria. Assim, a queda da

pedra é necessária e o andar de um ser humano é necessário, mas que uma pedra

caia sobre minha cabeça quando ando é inteiramente contingente ou acidental.

Todavia, é muito diferente a situação das ações humanas. É verdade que é por

uma necessidade natural ou por uma lei da Natureza que ando. Mas é por

deliberação voluntária que ando para ir à escola em vez de andar para ir ao

cinema, por exemplo. É verdade que é por uma lei necessária da Natureza que os

corpos pesados caem, mas é por uma deliberação humana e por uma escolha

voluntária que fabrico uma bomba, a coloco num avião e a faço despencar sobre

Hiroshima.

Um dos legados mais importantes da Filosofia grega é, portanto, essa diferença

entre o necessário e o contingente, pois ela nos permite evitar o fatalismo - “tudo

é necessário, temos que nos conformar e nos resignar ” -, mas também evitar a

ilusão de que podemos tudo quanto quisermos, se alguma força extranatural ou

sobrenatural nos ajudar, pois a Natureza segue leis necessárias que podemos

conhecer e nem tudo é possível por mais que o queiramos.

? A idéia de que os seres humanos, por Natureza, aspiram ao conhecimento

verdadeiro, à felicidade, à justiça, isto é, que os seres humanos não vivem nem

agem cegamente, mas criam valores pelo quais dão sentido às suas vidas e às

suas ações.

Convite à Filosofia

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A Filosofia surge, portanto, quando alguns gregos, admirados e espantados com a

realidade, insatisfeitos com as explicações que a tradição lhes dera, começaram a

fazer perguntas e buscar respostas para elas, demonstrando que o mundo e os

seres humanos, os acontecimentos e as coisas da Natureza, os acontecimentos e

as ações humanas podem ser conhecidos pela razão humana, e que a própria

razão é capaz de conhecer-se a si mesma.

Em suma, a Filosofia surge quando se descobriu que a verdade do mundo e dos

humanos não era algo secreto e misterioso, que precisasse ser revelado por

divindades a alguns escolhidos, mas que, ao contrário, podia ser conhecida por

todos, através da razão, que é a mesma em todos; quando se descobriu que tal

conhecimento depende do uso correto da razão ou do pensamento e que, além da

verdade poder ser conhecida por todos, podia, pelo mesmo motivo, ser ensinada

ou transmitida a todos.

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