quinta-feira, 6 de maio de 2010

Democracia, cidadania e educação


Democracia, cidadania e educação
Ética
Dentre os elementos básicos que sustentam a educação em valores estão o
princípio da democracia e da cidadania. Compreender suas relações com a
ética e com a educação é essencial na luta pela construção de uma sociedade
mais justa.
Como vimos anteriormente, a democracia pertence ao núcleo moral central da
sociedade, pelos pressupostos de justiça, de igualdade e de eqüidade que
sustentam essa forma de regime político e de regulação das relações sociais.
A cidadania passa não apenas pela conquista de igualdade de direitos e deveres
a todos os seres humanos, mas também pela conquista de uma vida digna, em
sua mais ampla concepção, para todos os cidadãos e cidadãs habitantes do
planeta. Esses são princípios éticos fundamentais que estão na base da sociedade
contemporânea e por isso é importante estudar seus pressupostos, com o intuito
explícito de que sejam adotados e consolidados nas instituições escolares.
O texto que será apresentado a seguir propiciará dados para a reflexão dos
membros do Fórum Escolar de Ética e de Cidadania sobre algumas
características da democracia e da cidadania. As propostas de atividades que
serão apresentadas na seqüência buscarão ajudar as comunidades envolvidas
neste programa a implementá-los em seu dia-a-dia.
ARAÚJO, Ulisses FA construção de escolas democráticâsistórias sobre
complexidade, mudanças e resistências. São Paulo: Moderna, 2002. p. 32-
Democracia, cidadania e educação
Sempre me intrigou o emprego bastante difundido da
palavra democracia no âmbito educacional. Se a
origem e uso do termo refere-se tradicionalmente a
"forma de governo" ou a "governo da maioria", será que
uma escola democrática é aquela cuja forma de
organização está pautada no princípio de que deve ser
governada pelos interesses da maioria, que são os
alunos e as alunas? A história demonstra os problemas que propostas dessa
natureza, de autogoverno, acarretam para a organização e para o
funcionamento de instituições escolares, e para atingir as finalidades educativas
das escolas.
Em um primeiro momento de seu livro Democracia e participação escolar
(2000), Puig nos lembra que, embora útil para definir um modelo desejável de
relações políticas na sociedade, o termo democracia não é necessariamente
adequado para caracterizar instituições como a família, a escola e os hospitais.
Isto porque tais instituições sociais são constituídas por agentes que possuem
interesses e status diferentes. De acordo com ele,
essas instituições foram pensadas para satisfazer algumas necessidades
humanas que, de maneira inevitável, implicam a ação de sujeitos com
capacidades, papéis e responsabilidades muito diferentes. São alheios à
idéia de participação igualitária. Os pais e as mães têm um papel
assimétrico com respeito aos filhos e às filhas, da mesma maneira que os
professores e as professoras o têm com respeito aos seus alunos e às suas
alunas, ou os médicos e as médicas com respeito aos seus pacientes e às
suas pacientes. É nesse sentido que dissemos que para essas instituições
não serve o qualificativo de democráticas, pois não são horizontais nem
igualitárias (p. 25).
Isso não significa, de fato, que para Puig as instituições escolares não possam
ser vistas como democráticas. Nesse mesmo livro, mais adiante, o autor
demonstra que pode haver escolas democráticas, desde que se consiga um
equilíbrio no jogo entre a assimetria funcional das relações e a simetria
democrática dos princípios que devem reger as instituições sociais.
Na perspectiva de simetria, os direitos de igualdade e liberdade, por exemplo,
devem ser extensivos a todas as pessoas nas instituições democráticas e nas
escolas. Já a idéia de assimetria natural dos papéis de estudantes e docentes nas
relações escolares, assim como nas relações familiares e no âmbito médico,
calcada na diferenciação de conhecimentos e experiência, aponta problemas
na compreensão de como a democracia se apresenta em tais instituições.
Precisamos ter clareza de tais concepções e cuidado em sua interpretação, pois
dependendo da forma com que é concebida abrem-se possibilidades para
justificar o autoritarismo e o absolutismo.
A pergunta é: será que esse paradoxo de assimetria e simetria nas relações
sociais pode servir de justificativa para o estabelecimento de relações
autoritárias no âmbito das instituições sociais citadas? Essa parece ser urna boa
justificativa para a forma tradicional com que pais e mães, professores e
professoras, médicos e médicas se relacionam com as pessoas que lhes são
subordinadas. Será que o autoritarismo que permeia, em geral, as relações
nessas instituições se justifica em sociedades que almejam a democracia?
É melhor termos cuidado com tais conclusões, que podem ser nefastas para a
real democratização da sociedade.
Começo a discussão lembrando outro princípio inerente ao conceito de
justiça e, conseqüentemente, de democracia: a eqüidade, que reconhece o
princípio da diferença dentro da igualdade. Assim, urna lei é justa somente
se reconhece que todos são considerados iguais perante ela, ao mesmo
tempo que considera as possíveis diferenças relacionadas a seu
cumprimento ou a sua violação. Um exemplo clássico é uma lei que define
que não se devem matar outras pessoas e estabelece que toda pessoa
(igualdade) que violar tal lei, seja rico, pobre, branco, negro, empresário ou
trabalhador, será julgada por essa ação. Ao mesmo tempo, porém, essa lei
deverá considerar a motivação e a intencionalidade da ação cometida para
ser verdadeiramente justa. Uma pessoa que mata outra por puro sadismo não
pode ser julgada pela sociedade da mesma maneira que quem mata em
legítima defesa (eqüidade).
Se pensamos a democracia somente a partir do ideal de igualdade, acabamos
por destruir a liberdade. Se todos forem concebidos como iguais, onde ficará o
direito democrático da diferença, a possibilidade de pensar de maneira
diferente e de ser diferente? Por isso, hoje se compreende que os regimes que
tentaram buscar os ideais da democracia a partir da igualdade pura, como o
comunismo, terminaram por se constituir em sistemas políticos absolutistas e
autoritários. Para que o modelo de democracia seja justo e almeje a liberdade
individual e coletiva, é necessário que a igualdade e a eqüidade sejam
compreendidas como complementares. Ao mesmo tempo que a igualdade de
direitos e deveres deve ser objetivada nas instituições sociais, não se devem
perder de vista o direito e o respeito à diversidade, ao pensamento divergente.
Voltando à escola, essa concepção de que a democracia e a justiça pressupõem
a igualdade e a eqüidade ajuda-nos a compreender como a democracia pode
ser concebida no âmbito educacional. Ou seja, parte-se, em primeiro lugar, da
assimetria dos papéis de estudantes e docentes, entendendo sua diferenciação
natural a partir do princípio da eqüidade. Isso, porém, não desconsidera o fato
de que em alguns aspectos os dois grupos são iguais perante a sociedade, tendo
os mesmos direitos e deveres de todos os seres humanos. Essa é uma relação
complexa que solicita um raciocínio dialético para sua compreensão.
Aos professores e às professoras são destinados papéis diferenciados dentro da
instituição escolar, devido a seus conhecimentos e sua experiência.
A sociedade lhes atribui responsabilidades e deveres que lhes permitem avaliar
alunos e alunas e utilizar da autoridade da função para exigir o cumprimento
das regras e normas sociais. Por outro lado, tais poderes não lhes garantem o
direito de agir de maneira injusta, desconsiderando, por exemplo, os direitos
relativos à cidadania de seus alunos e alunas.
Nesse sentido, se queremos falar de democracia na escola devemos, ao mesmo
tempo, reconhecer a diferença nos papéis sociais e nos deveres e buscar os
aspectos em que todos os membros da comunidade escolar têm os mesmos
direitos. Estou falando, por exemplo, do direito ao diálogo, à livre expressão de
sentimentos e idéias, ao tratamento respeitoso, à dignidade, etc, tanto nas
escolas como nos hospitais e nas famílias. Estou me referindo, afinal, à
igualdade de direitos que configura a cidadania.
Cidadania e educação
Entramos no tema da cidadania, outra palavra que pode ser empregada em
muitos sentidos. Desde sua origem na Roma antiga, a idéia de cidadania está
vinculada ao princípio de que os habitantes têm o direito de participar da vida
política da sociedade. O termo vem da palavra latina civis, que significa
"habitante", e civitatis, que dava a condição de cidadão aos habitantes. Ou seja,
dava-lhes o direito de participar ativamente na vida e no governo do povo.
Novamente, como no modelo grego de democracia, a cidadania na Roma antiga
não era atribuída a todos os habitantes. Em primeiro lugar, estrangeiros e escravos
não eram cidadãos, denominação garantida somente aos romanos livres. Em
segundo lugar, mesmo entre os romanos livres havia uma distinção entre a
cidadania e a cidadania ativa. Enquanto a primeira era uma denominação dada à
maioria dos romanos, incluídas nesse grupo todas as mulheres, a segunda, que
dava o direito efetivo de participar das atividades políticas e da administração
pública, era destinada a um pequeno grupo de romanos (homens) livres.
Foi também a partir dos ideais que sustentaram a Revolução Francesa que o
direito de exercer a cidadania passou a ser almejado para todas as pessoas e não
somente a um pequeno grupo de habitantes. Seu pressuposto era de que
somente se toda a população participasse das decisões políticas e da elaboração
das leis se poderia constituir uma sociedade justa. Desde então, paralelamente à
democratização das sociedades contemporâneas ocidentais, todos os segmentos
da população vêm lentamente conquistando o direito de participar
democraticamente de sua vida política. As mulheres e os mais pobres, não
possuidores de patrimônio material consistente, por exemplo, foram tendo seus
direitos de cidadãos e cidadãs reconhecidos em tais sociedades.
Em seu sentido tradicional, portanto, a cidadania expressa um conjunto de
direitos e de deveres que permite aos cidadãos e cidadãs participar da vida
política e da vida pública, podendo votar e ser votados, participar ativamente
na elaboração das leis e exercer funções públicas, por exemplo.
Partindo dessas idéias, podemos fazer: um questionamento importante para a
compreensão atuai dos significados possíveis para cidadania. Será que a
garantia de participação ativa na vida política e pública é suficiente para
garantir a todas as pessoas o atendimento de suas necessidades básicas?
Não acredito que a cidadania pressuponha apenas o atendimento das
necessidades políticas e sociais, com o objetivo de garantir os recursos
materiais que dêem uma vida digna às pessoas. Do meu ponto de vista é
necessário que cada ser humano, para poder efetivamente participar da vida
pública e política, se desenvolva em alguns aspectos que lhe dêem as
condições físicas, psíquicas, cognitivas, ideológicas e culturais necessárias para
uma vida saudável, uma vida que o leve à busca virtuosa da felicidade,
individual e coletiva. Entender a cidadania a partir da redução do ser humano
a suas relações sociais e políticas não é coerente com a multidimensionalidade
que nos caracteriza e com a complexidade das relações que estabelecemos
com o mundo à nossa volta e com nós mesmos.
Assim, a luta pela cidadania passa não apenas pela conquista de igualdade de
direitos e de deveres a todos os seres humanos, mas também pela conquista de
uma vida digna, em sua mais ampla concepção, para todos os cidadãos e
cidadãs, habitantes do planeta.
Tal tarefa, complexa por natureza, pressupõe a educação de todos, crianças,
jovens e adultos, a partir de princípios coerentes com esses objetivos, com a
intenção evidente de promover a cidadania pautada na democracia, na justiça,
na igualdade, na eqüidade e na participação ativa de todos os membros
da sociedade.
Chegamos, dessa maneira, ao tema da educação para a cidadania, elemento
essencial para a democracia. Para introduzir o assunto, gostaria de citar algumas
idéias de Machado (1997), para quem
educar para a cidadania significa prover os indivíduos de instrumentos para
a plena realização desta participação motivada e competente, desta simbiose
entre interesses pessoais e sociais, desta disposição para sentir em si as dores
do mundo. (p. 106)
Estamos falando, portanto, da formação e da instrução das pessoas para sua
capacitação à participação motivada e competente na vida política e pública da
sociedade. Ao mesmo tempo, entendo que essa formação deva visar ao
desenvolvimento de competências para lidar com a diversidade e o conflito de
¡déias, com as influências da cultura e com os sentimentos e emoções presentes
nas relações do sujeito consigo mesmo e com o mundo. Além disso, deve garantir
a possibilidade e a capacidade de indignação com as injustiças cotidianas.
Nesse sentido, a educação para a cidadania e para a vida em uma sociedade
democrática não pode se limitar ao conhecimento das leis e regras, ou a formar
pessoas que aprendam a participar da vida coletiva de forma consciente.
É necessário algo mais, que é o trabalho para a construção de personalidades
morais, de cidadãos e cidadãs autônomos que buscam de maneira consciente
e virtuosa a felicidade e o bem pessoal e coletivo. Conforme apontamos em
outra ocasião (Araújo, 1999a), esse é um modelo de personalidade moral que
incorpora em seu núcleo central
a racionalidade autônoma baseada na igualdade, na eqüidade, na justiça,
no auto-respeito e no respeito pela natureza (em seu sentido global). Mas
neste modelo a razão não é soberana, porque é também imbuída de
afetividade, de sentimentos e emoções, que considera em seus juízos, ao
mesmo tempo, os interesses do próprio sujeito e dos outros seres presentes
em suas interações, (p. 67)
Trabalhar na formação desse cidadão e dessa cidadã pressupõe considerar as
diferentes dimensões constituintes da natureza humana: a sociocultural, a
afetiva, a cognitiva e a biofisiológica2, e atuar intencionalmente sobre elas.
Atuar sobre a dimensão sociocultural pressupõe propiciar uma educação que
leve as pessoas a conhecer criticamente os dados e fatos sobre a cultura e a
realidade social em que estão inseridas, assim como ao domínio dos conteúdos
essenciais ao exercício da cidadania, principalmente a língua e as matemáticas.
Atuar sobre a dimensão afetiva pressupõe oferecer condições para que as
pessoas conheçam a si mesmas, seus próprios sentimentos e emoções, que
construam o auto-respeito e valores considerados socialmente desejáveis. No
caso da dimensão cognitiva, partimos do princípio de que a construção de
determinadas capacidades intelectuais ou de formas mais complexas de
organizar o pensamento é importante para a compreensão da realidade e para
a organização das relações das pessoas com o mundo. Por fim, temos a
dimensão biofisiológica, que é nosso próprio corpo, sede de nossa
personalidade. Garantir seu desenvolvimento adequado, respeitando as
diferenças e características individuais, é essencial para o enriquecimento de
nossas experiências e para a interação com o mundo a nossa volta.
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